Mulheres quilombolas da Paraíba falam de luta, resistência e trabalho em comunidade
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Mulheres negras que enfrentam os preconceitos e as diferentes expressões do racismo de forma corajosa e brava, dentro de suas comunidades tradicionais, fortalecendo suas histórias, suas trajetórias, suas origens. Que vivem em comunidades quilombolas da Paraíba e que buscam formas de viver e de se manter a partir daquilo que a própria comunidade tem a oferecer. São histórias de dificuldades e de muita luta, mas acima de tudo de orgulho sobre de onde vêm e o que querem para os seus futuros. No Dia da Consciência Negra, duas dessas mulheres contam um pouco sobre suas vidas, sobre seus sonhos, seus projetos de vida, suas lutas por mais justiça social e mais oportunidades para elas e para suas companheiras de trabalho.
É o caso de Severina dos Ramos de França, de 55 anos, agricultora e moradora do assentamento quilombola Guruji 2, em Conde, uma das fundadoras da associação Mulheres Negras do Campo. Ninha, como ela é mais conhecida, e mais oito mulheres, plantam tubérculos como batata doce, inhame e macaxeira nos limites da própria comunidade e depois usam essas raízes para preparar uma série de iguarias. Receitas como brigadeiros, panetones, pães, tortas, empadas, coxinhas, bolos e pastéis que depois são comercializados.
É tudo plantado e produzido no próprio assentamento. Tudo 100% natural”, orgulha-se Ninha.
Ela conta que a ideia surgiu há sete anos, e portanto em 2015, a partir de uma assistência técnica realizada por profissionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Treinamentos e consultorias para permitir que o negócio fosse aberto e que funcionasse no próprio assentamento.
Produtos todos são à base de macaxeira, batata doce e inhame – Foto: Reprodução/Instagram/Mulheres Negras do Campo
De início, eram 25 mulheres, mas as dificuldades financeiras foram obrigando algumas a desistir. Ainda assim, sete anos depois, nove delas resistem, e, o que é mais impactante para Ninha, com planos de expansão constante.
A primeira reunião aconteceu em 25 de julho de 2015, e aconteceu de forma improvisada mesmo, embaixo de uma mangabeira, pé de mangaba nativa da Paraíba que é abundante na região. “Não tínhamos sede, mas a cada reunião a gente ia discutindo as pautas e as prioridades da associação. Definindo as primeiras ações, os primeiros objetivos”, relembra Ninha.
De início, os trabalhos eram mais improvisados e se cozinhava na casa de uma das associadas. Os produtos cozinhados eram vendidos de porta em porta, na comunidade e em bairros de Conde, e em três meses elas compraram o primeiro fogão, ao custo de R$ 900.
“Para a gente, R$ 900 era uma fortuna. E foi uma grande vitória”, comemora.
Ninha em ação na cozinha da associação – Foto: Ninha/Arquivo Pessoal
O trabalho foi ganhando corpo. Tempos depois, elas ganharam uma concorrência e receberam um investimento do Fundo Baobá para Equidade Racial, que permitiu que elas pudessem investir em oficinas de segurança do trabalho e de manuseio de alimentos, em assessoria técnica para a definição da logomarca da associação, na compra de equipamentos.
Mas, ainda faltava o grande sonho. A construção da cozinha comunitária da associação, que foi alcançada dois anos depois do início dos trabalhos. Foi nesse período, inclusive, que muitas das desistências aconteceram. “O dinheiro não era dividido. Era todo reunido para a construção da cozinha. Algumas foram saindo nesse período por causa das dificuldades financeiras e hoje são só nove. Mas não desistimos”, destaca.
A cozinha foi construída com verbas do Programa Empreender, do Governo da Paraíba, e o empréstimo foi regiamente quitado em 2019. Agora, o sonho é para construir um terraço ao lado da cozinha que possa receber o turista quando ele for visitar o local. Um espaço também para eventos, almoços, lanches. Enfim, novas possibilidades de receita.
A batalha é grande. A vida não é fácil não. Mas a gente persevera”, ensina ela.
A cozinha foi o primeiro sonho realizado e a meta agora é um terraço para recepcionar melhor os turistas – Foto: Reprodução/Instagram/Mulheres Negras do Campo
As dificuldades estão principalmente na falta de uma demanda regular para os produtos. Hoje em dia, elas produzem as receitas por encomenda. Os pedidos podem ser feitos até a sexta-feira pela manhã, a produção acontece na sexta-feira à tarde e logo depois os produtos já estão a disposição dos clientes. Segundo Ninha, já houve meses da arrecadação bater os R$ 10 mil, mas nem sempre é assim. E, quando não é, não tem jeito. A prioridade é a associação.
Ela conta que, ao término de cada mês, primeiro é retirado a parte de despesas. Depois, separa-se uma parte para a cozinha e para os novos investimentos. Só no fim de tudo isso, separa o que sobrou entre as mulheres da associação. Mas, nem sempre sobra.
“Ainda não vivemos exclusivamente do projeto. Mas esse é o nosso grande sonho. Tirar a nossa própria renda de lá”, completa.
Mestra de cultura, artesã, coordenadora de museu, liderança comunitária
Ainda no município de Conde, em outra comunidade quilombola, vive Ana Lúcia Rodrigues do Nascimento, 59 anos, conhecida como Ana do Coco. Ela é do Quilombo do Ipiranga e tem uma rica e múltipla vida como mestra de cultura popular, artesã, fundadora do Museu Quilombola do Ipiranga. Muito por isso, é uma respeitada liderança comunitária da região.
Apresentação musical do Coco de Roda Novo Quilombo
Fica até difícil falar de tantas atividades de Ana, que, além de tudo, é professora aposentada. Mas ela fala, logo de início, da importância de sua atuação no Coco de Roda Novo Quilombo:
“Nós temos a nossa dança, a nossa tradição. São 200 anos de cultura, 32 em que eu danço, sete em que eu atuo como coordenadora do coco de roda do Quilombo do Ipiranga, substituindo minha mãe na função depois que ela morreu”, destaca Ana.
A mãe dela, no caso, era Lenita Lina do Nascimento, outra importante mestra de coco de roda da comunidade, de quem ela herdou a missão de juntar os componentes, decidir o que fazer em termos de cultura popular na comunidade, definir as atividades e as agendas de apresentações. “A importância dessa tradição é a de resgatar a nossa história. A dança que veio dos navios negreiros quando o nosso povo foi enviado para cá na condição de pessoas escravizadas”, declara.
É uma dança que conta muito a nossa história, a história do povo negro”, completa Ana do Coco.
Ela destaca ainda que foi através da visibilidade da dança e da cultura popular que eles conseguiram muitas melhorias para o quilombo. E foi em meio a essas melhorias que surgiu a ideia do museu.
Na época do Governo Lula, o Governo Federal realizou um investimento pioneiro no quilombo e construiu 150 casas de alvenaria, para substituir as versões de taipa que existiam no lugar. A missão era demolir as casas antigas para evitar a propagação do barbeiro que provoca a doença de chagas, mas uma delas foi preservada como forma de deixar vivo o passado e deixar para a posteridade as condições de vida da população negra quilombola no passado. Nascia assim o Museu do Quilombo do Ipiranga.
“Colocamos dentro adereços, utensílios, objetos que eram usados nessas casas. Ficou o legado, o conhecimento de como era uma casa quilombola antes”, conta.
Museu Quilombo do Ipiranga, em Conde
Essa foi mais uma parceria de mãe e filha, Lenita e Ana, que a filha seguiu tocando após a morte da mãe. E, ela conta, o museu vive cheio. Recebe diariamente dezenas de estudantes e turistas, vindos em excursões ou por conta própria em grupos pequenos. “Realizamos um trabalho de ‘contação de história’ para falar de nosso passado”, explica
Ana não para. Atua também como artesã. De início, porque não encontrava adereços que gostasse nas lojas tradicionais. Resolveu fazer os próprios. As peças eram bonitas e chamou a atenção das pessoas próximas. Ela começou a vender colares, pulseiras, brincos, entre outros.
Depois, ampliou ainda mais o trabalho. E criou uma associação de mulheres artesãs para produzir adereços com temáticas tradicionais e quilombolas. Hoje são 10 mulheres, que colhem na zona rural do município sementes crioulas e a partir daí fabricam os adereços. Fez isso para fortalecer a independência das mulheres de sua comunidade.
“As mulheres no quilombo são lideranças muito fortes, muito atuantes. Vivem numa rede de proteção. Essa história de que ninguém solta a mão de ninguém funciona no quilombo”, orgulha-se.
Objetivo do museu é contar a história da população quilombola
Quatro anos de dificuldades
Os discursos de Ninha e Ana têm muito em comum. E se assemelham ainda mais quando se fala dos últimos quatro anos, em meio à gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República.
Ninha, por exemplo, cuja associação foi muito beneficiada pela ajuda do Incra, diz que as assistências técnicas foram totalmente suspensas depois da posse do atual presidente. Elas foram deixadas à própria sorte.
“Foi um período muito difícil mesmo. Ainda está sendo, aliás”, explica. Ainda de acordo com ela, “não foi um governo de sobrevivência, mas de massacre”.
Opinião parecida tem Ana do Coco. De acordo com ela, foram tempos de extrema violência contra o povo quilombola:
“Fomos apagados da história. Não houve uma ação sequer em nosso favor. Houve uma autorização para que o negro pudesse ser vítima de violência. Passamos quatro anos de angústias, mas a gente sobreviveu”, finaliza.
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Phelipe Caldas
Jornalista, escritor, mestre (UFPB) e doutorando (UFSCar) em antropologia social. Pesquisa os atos de torcer no futebol. Autor de cinco livros.
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