Francisco era um homem bom num mundo mau
Vi Frei Betto dizer na televisão que só conheceu dois papas progressistas: João XXIII, que sucedeu Pio XII em 1958 e morreu em 1963, e Francisco, que sucedeu Bento XVI em 2013 e morreu aos 88 anos nesta segunda-feira, 21 de abril de 2025.
O frade dominicano nascido em Minas Gerais fez 80 anos em agosto de 2024. Quando ele nasceu, em 1944, Pio XII já era papa há cinco anos. Não é consensual, mas muita gente assegura que Pio XII, durante a II Guerra, foi aliado do nazifascismo.
Em seu breve papado, João XXIII fez uma revolução dentro da Igreja Católica. Foi o papa que deu início ao Concílio Vaticano II. À sua doce memória, o cineasta Pier Paolo Pasolini, que era gay, ateu e marxista, dedicou O Evangelho Segundo São Mateus.
Há muitos anos, vi Dom José Maria Pires contar histórias de Dom Helder Câmara. Numa delas, Dom Hélder Câmara dizia ao papa Paulo VI que ele deveria deixar a suntuosa sede do Vaticano para morar numa casinha humilde na periferia de Roma.
Era mais compatível com o verdadeiro cristianismo – argumentava o arcebispo de Olinda e Recife. Como resposta, Dom Hélder Câmara ouviu de Paulo VI que o papa é um chefe de Estado e, como tal, está impedido de abandonar determinadas litugias.
Realidade ou lenda essa conversa de Dom Hélder Câmara com Paulo VI narrada por Dom José Maria Pires num programa de televisão? Se não for realidade, que se imprima a lenda, que é o que deve ser feito quando esta é mehor do que aquela.
A morte do papa Francisco me trouxe a lembrança dessa história envolvendo Dom Hélder Câmara e o papa Paulo VI. Francisco não foi para uma casinha na periferia de Roma, mas trocou os aposentos papais por um lugar mais modesto na Casa Santa Marta.
Pode ser somente um símbolo, mas, na infância, aprendi com minha mãe que símbolos são coisas pequenas que falam sobre coisas grandes. O quarto simples na Santa Marta é um símbolo do que Francisco era e do que queria que o mundo enxergasse nele.
Reformas profundas, isso ele não conseguiu fazer numa instituição complexa e em crise como a Igreja Católica que esteve sob o seu comando. Em crise e contaminada por grupos conservadores que conduzem o rebanho a um nocivo fundamentalismo.
Mas Frei Betto está certo. A persona pública de Francisco fez dele um papa progressista, como progressista foi o João XXIII da virada da década de 1950 para a de 1960. O mesmo não pode ser dito dos outros papas que vimos no nosso tempo.
A firmeza e a coragem de Francisco no enfrentamento de questões cruciais do mundo em que vivemos me fez lembrar da firmeza e da coragem dos bispos progressistas brasileiros que aproximaram a Igreja dos excluídos e lutaram contra a ditadura militar.
Não é comunismo, é puro Evangelho – dizia o papa Francisco. Não é comunismo, é Evangelho de Jesus Cristo – é a mesma coisa do que dizia Dom Hélder Câmara, décadas atrás, em sua destemida caminhada em defesa da não violência.
Francisco bradou contra a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin. Francisco bradou contra o genocídio dos palestinos promovido por Benjamin Netanyahu em Gaza. Francisco chamava atenção para a questão climática e para o drama da imigração.
A Igreja Católica ainda não casa pessoas do mesmo sexo. Mas, com Francisco, deixou de negar a bênção a elas. Não é apenas um avanço civilizatório. É a adoção de uma postura perfeitamente compatível com o Evangelho de Jesus Cristo.
Mercy.Noise. Francisco era uma voz de misericórdia num mundo barulhento. Quem disse, ao saber da morte do papa, foi o grande compositor americano Bob Dylan. O Nobel de Literatura é judeu, mas, numa fase de sua vida, converteu-se ao cristianismo.
Francisco queria que seu sucessor fosse chamado de João XXIV. Francisco era um homem bom num mundo mau. Tristemente, veremos que será velado também por gente que representa esse mundo mau e doente que ele tanto enfrentou e combateu.