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“Gal é pra sempre”, diz Caetano Veloso. Cantora morreu há um ano

Nesta quinta-feira, nove de novembro de 2023, faz um ano que Gal Costa (Fotos/Reprodução) morreu em sua casa, em São Paulo. Aos 77 anos, ela iniciava o tratamento de um câncer quando teve um enfarte fulminante.

Caetano Veloso, seu amigo e companheiro de Tropicalismo e Doces Bárbaros, tem dito que “Gal é pra sempre”. É o sentimento de muitos que seguiram a sua carreira e ouviram a sua grande voz por mais de 50 anos.

Agora mesmo, essa imensa cantora brasileira está nas telas dos cinemas na cinebiografia Meu Nome É Gal. Debruçado sobre o início da carreira de Gal, o filme é nostálgico para uns e novo para outros – aqueles a quem apresenta a artista e sua história.

No dia seguinte à morte de Gal Costa, impactado pela perda, escrevi algo sobre ela. Reposto nesse primeiro aniversário da sua morte. É o que segue:

Em 1968, numa noite qualquer, Gal Costa e Caetano Veloso saíram do estúdio e foram a um restaurante em São Paulo. Tinham acabado de gravar Baby, que Caetano fez por sugestão de Maria Bethânia e deu para Gal cantar. No restaurante, casualmente, encontraram com Geraldo Vandré. Gal cantarolou Baby para Vandré, e o paraibano disse que aquilo era uma merda. Sempre que ouço Baby, lembro desse episódio, e não foi diferente em algum momento dessa quarta-feira, nove de novembro de 2022, o dia em que perdemos Gal Costa.

Duvido que Geraldo Vandré, que, ideologicamente, oscilou entre a mais destemida esquerda e a mais reacionária direita, tenha composto algo tão bonito, tão permanente, tão doce e tão bárbaro quanto Baby. E até perguntei a ele porque chamou a canção de merda, mas não obtive resposta. Essa lembrança me persegue, e é tão forte, por, simbolicamente, retratar a reação da banda mais careta da MPB ao que havia (e ainda há) de mais libertador, subversivo e transgressor em artistas como os que fizeram o movimento tropicalista no remoto ano de 1968.

Baby é minha primeira lembrança de Gal. Aos nove anos, 1968. Tocava no rádio. Falei da canção para a garota que escreveu UNE na palma da minha mão, na escola pública onde fazíamos o curso primário. Não muito longe, no centro da cidade, os estudantes corriam da polícia do governador João Agripino, e as moças tinham suas fardas  rasgadas pelas baionetas da repressão. Baby tinha as cordas de Rogério Duprat, a voz joãogilbertiana de Gal, a melodia e os versos de Caetano (“Você precisa saber de mim”). E “Diana” a se fundir com “baiana”.

Que Pena (Jorge Ben), Não Identificado (Caetano), Tuareg (Ben, outra vez), Meu Nome é Gal (Roberto e Erasmo Carlos) vieram com o ano de 1969. Caetano Veloso e Gilberto Gil haviam sido presos. Estavam confinados em Salvador, iam para o exílio. “É preciso estar atento e forte”, dos dois, era o grito de Gal, menos joãogilbertiana, mais rock’n’ roll. A voz dela ficara entre nós como, àquela altura, a voz possível do movimento tropicalista. “Dessa janela sozinha, olhar a cidade me acalma” – dizia a canção de Jards Macalé no disco de 1970.

E assim, Gal foi montando uma das trilhas mais bonitas das nossas vidas. Como Caetano, como Gil, como Chico Buarque, como Roberto Carlos, como os Beatles. Como tantos que nunca nos deixaram. Como tantos de quem nunca nos desfizemos. Gal Fa-tal. A guitarra de Lanny Gordin, ou de Pepeu Gomes, a evocar Jimi Hendrix. “Tente esquecer em que ano estamos” – era 1971, 1972. “Pérola Negra, te amo, te amo” ou “sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo”. Menos veludo, menos cristal, mais labareda – pelo menos ali.

Índia tem a sanfona linda de Dominguinhos e a nudez da capa escondida por um saco plástico na vitrine da loja de discos. Cantar tem toda a coisa joãogilbertiana, a produção de Caetano, os teclados e os arranjos de João Donato. E, para mim, tem Gal vista de perto pela primeira vez, em dois shows no palco do Teatro Santa Roza. Era abril de 1975. Ela corria de um lado para o outro enquanto evocava Orlando Silva: “Tu és toda Bahia/É a flor do mocambo/Da gente de cor/Faz do amor confusão/Numa misturação…”. Tinha raça e tradição, como na letra da música.

Temporada de Verão, Gal Canta Caymmi, Os Doces Bárbaros, Caras e Bocas, Água Viva. Ano a ano, disco a disco, belezas e mais belezas. As canções dos contemporâneos, o olho no passado, a construção de um repertório belo e rico que falava (ainda fala) da identidade de um país e de um povo. E em 1979, vem a explosão de Gal Tropical. A voz no topo, emissão perfeita, entre as notas mais graves e as mais agudas, pura técnica, imensa emoção. Índia, Força Estranha, Balancê. E Meu Nome é Gal atualizada no duelo com a guitarra.

Quem já fez Caymmi, agora fazia Ary Barroso, outro dos nossos gigantes. Quem já fez Caetano, Gil, Chico, Milton, agora fazia Djavan. Logo faria Cazuza. Mostraria os seios no palco, a blusa aberta, entre aplausos e vaias, e bradaria: “Brasil, mostra a tua cara!”. A voz doce, cool, joãogilbertiana. A voz a gritar, como uma Janis Joplin daqui. Um cantinho, um violão. “Da maior importância, deve haver uma transa qualquer, pra você e pra mim, entre nós” – sim, um cantinho, um violão, mas com as pernas bem abertas, deixando todas, todos e todes cheios de tesão.

Gal Costa sempre foi essa grande voz, essa voz tamanha. Gal Costa sempre foi essa mulher transgressora, embora às vezes tão contida. Gal Costa falava pouco, mas cantava demais. Ao saber da sua morte, na manhã desse triste dia nove de novembro de 2022, meu choro esperou pelo instante em que ouvi a voz dela na televisão. Uma canção, mais outra e mais outra. Uma imagem, mais outra e mais outra. E aí não parou mais. A voz não parou mais. As imagens não pararam mais. O choro não parou mais. Mais ainda quando me vi diante do choro de Caetano e Gil.

O veludo, o cristal, a labareda – como tão precisamente definiu Nelsinho Motta. A voz de Gal está dentro de nós. Ela e nosso tempo são inseparáveis. Ela e o Brasil são inseparáveis. Ela é um pedaço muito importante do Brasil, esse lugar que é construído, destruído e reconstruído. Ela é um pedaço muito importante das nossas vidas. Ela é símbolo de um grupo de artistas extraordinários. Por isso, é tão doloroso perder Gal. Ela se vai sem ver a reconstrução que está começando. Ela era uma uma flor incrível vinda da Bahia, como disse Tom Jobim.

GAL COSTA EM JOÃO PESSOA

Entre 1975 e 2019, Gal cantou dez vezes para a plateia pessoense. Foi pouco para uma artista com 55 anos de carreira, se tomarmos como referência o lançamento do primeiro álbum – Domingo, em parceria com Caetano Veloso, de 1967. Segue um pouco sobre cada show:

CANTAR, 1975

No Teatro Santa Roza. Turnê realizada a partir do álbum homônimo, produzido por Caetano Veloso. Em Cantar, Gal não era mais labareda. Voltara a ser veludo e cristal. Era cool, joãogilbertiana. Contava com o auxílio luxuosíssimo de João Donato nos arranjos e no teclado. Na passagem de Cantar por João Pessoa, o som pifou na primeira noite. Na segunda, Gal teve que fazer dois shows. Veludo, cristal e labareda foi como Nelsinho Motta definiu a voz da cantora.

CARAS E BOCAS, 1977

No ginásio de esportes do Clube Astrea. Era o show de Tigresa no ano das patrulhas ideológicas. Quem estava nos teclados era Wagner Tiso, companheiro de Milton Nascimento no Clube da Esquina. Gal enfrentou uma plateia hostil e até uma pequena vaia quando anunciou que ia cantar uma música americana. Era Negro Amor, versão que Caetano Veloso fez de It’s All Over Now, Baby Blue, clássico do repertório de Bob Dylan. Uma anotação particular: conheci Jomard Muniz de Britto, guru tropicalista, na noite de Caras e Bocas.

GAL TROPICAL, 1980

No ginásio de esportes do Clube Astrea. Gal esfuziante, arrebatadora, brasileiríssima, a partir de uma ideia do empresário Guilherme Araújo. A voz no auge, emissão perfeita. Uma inacreditável Força Estranha acústica, voz e violão. Os agudos de Índia. Gal cantando Balancê. E o “duelo” da artista com o guitarrista Victor Biglione em Meu Nome é Gal, que Roberto e Erasmo compuseram para ela em 1969. Tudo guardado para sempre no HD da minha memória afetiva.

PLURAL, 1991

No Teatro Paulo Pontes. Gal fazia a turnê do álbum homônimo. No palco, havia o encontro de sonoridades que podiam parecer antagônicas, mas, no fundo, remetiam a origens, a matrizes, a fontes. Acompanhada apenas por um violão, Gal revisitava Noel Rosa. Cantando Jorge Ben, soltava o corpo e os cabelos, guiada pela percussão da música baiana. Um luxo ver o show num teatro com 800 pessoas.

MINA D’ÁGUA DO MEU CANTO, 1995

No Teatro Paulo Pontes. Juntar canções de Caetano Veloso e Chico Buarque num único disco. Sair em turnê interpretando essas canções. Assim era Mina D’ Água do Meu Canto. Gal outra vez bem cool, muito técnica, bastante contida. Um repertório de pérolas do Caetano que ela tanto gravou e do Chico que ela gravou pouco. Dois autores gigantes de uma geração relidos por uma das vozes gigantes da mesma geração. Desalento, um lado B de Chico, era lindo de se ouvir/ver ao vivo.

GAL COSTA CANTA TOM JOBIM, 1999

No ginásio de esportes do Clube Cabo Branco. Tom Jobim e Gal Costa iam fazer um disco juntos. O projeto foi interrompido em 1994 com a morte de Tom. Em Gal Costa Canta Tom Jobim, show, álbum-duplo e DVD ao vivo, Gal oferece um precioso songbook do maior compositor popular do Brasil. Ela revisita os diversos tons de Tom num tributo superb. A direção musical e o piano são de Cristóvão Bastos.

RECANTO, 2014

No Busto de Tamandaré. Primeiro tem o álbum Recanto, em 2011. Um disco de Caetano Veloso, só com músicas de Caetano, mas cantado por Gal. Uma experiência incrível, radical, de timbres eletrônicos, que recolocou Gal no seu lugar mais criativo e ousado. Depois tem o show que levou para o palco o experimentalismo do álbum, e a ele acrescentou pérolas de diversas fases do repertório da artista. Extraordinário!

ESTRATOSFÉRICA, 2015

No Teatro Pedra do Reino. Recanto deu um grande impulso à carreira de Gal. Ao álbum feito em parceria com Caetano, seguiu-se Estratosférica, que associava Gal a muitas novidades. No estúdio e no palco, Estratosférica era grandioso, ainda que sem o caráter radical do trabalho anterior. No set list, outra vez o novo se cruzava com os hits de sempre. Seu êxito está associado à parceria fundamental da artista com o produtor Marcus Preto.

TRINCA DE ASES, 2017

Na Domus Hall. Em Trinca de Ases, Gal dividia o palco com Gilberto Gil e Nando Reis. Começou em Brasília numa homenagem aos 100 anos do nascimento de Ulysses Guimarães, acabou virando uma turnê com CD duplo e DVD ao vivo. Nando Reis imprimia sua pegada roqueira.

A PELE DO FUTURO, 2019

No Teatro Pedra do Reino. O álbum tinha um clima meio disco music dos anos 1970, tinha um dueto maravilhoso com Marília Mendonça e grandes canções inéditas. No palco, a guitarra de Pedro Sá fazia o riff de Dê um Rolê e jogava o espectador numa viagem por várias épocas. A canção de Gil parecia tão premonitória: “O sonho dessa canção passageira/Mochila da viagem passageira/Passagem nessa vida passageira/Para uma vida ainda passageira”. A Pele do Futuro foi a última vez de Gal em João Pessoa.

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