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Pelé morreu há um ano

Nesta sexta-feira, 29 de dezembro de 2023, faz um ano que morreu Pelé, esse gênio brasileiro. Sempre lembro dele e hoje reposto o que escrevi quando soube da sua morte.

“No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé, faz força com o pé na África” (Caetano Veloso/Two Naira Fifty Kobo, 1977).

“Pelo mundo inteiro, espero a visão que comove, e Pelé disse love, love, love” (Caetano Veloso/Love, Love, Love, 1978).

Ariano Suassuna tinha razão quando criticava o mau uso da palavra gênio. Ele dizia que, se a palavra era banalizada, não haveria outra na hora de classificar um verdadeiro gênio. Menciono o argumento de Suassuna pensando em Pelé, este sim, merecedor da classificação. Em 1958, logo depois da conquista da primeira Copa do Mundo pelo Brasil, Nelson Rodrigues, numa das suas crônicas, chamou Pelé de gênio, e disse que ele estaria inteiramente à vontade ao lado de outros gênios já reconhecidos pelo mundo, tratando-os como colegas.

Se Pelé tivesse morrido no Dia de Natal, a lembrança de Charles Chaplin seria inevitável. Chaplin, que morreu no Natal de 45 anos atrás, foi um gênio do cinema. O primeiro, se é que há outros como ele. Quando conquistou o mundo com o personagem Carlitos, Chaplin, que teve uma infância tão miserável quanto os personagens de Dickens, deu status de arte a um negócio que parecia ter surgido apenas para entreter as pessoas. Já Pelé, um menino preto e pobre do interior do Brasil, deu, graças a um singularíssimo talento, status de arte a um esporte popular.

O Pelé disso, o Pelé daquilo. Muhammad Ali, o imenso Cassius Clay, é o Pelé do pugilismo. Muita gente já disse assim. Mas não é só no esporte. Certamente, você já ouviu alguém dizer que Louis Armstrong é o Pelé do jazz. Armstrong, na segunda década do século XX, também deu status de arte ao jazz. Armstrong inventou um jeito de tocar, inventou um jeito de cantar e se transformou no símbolo principal da maior expressão da música popular que o mundo já conheceu. Louis Armstrong, ou Satchmo, era o Pelé do jazz.

Reforço essa ideia de Pelé como gênio consumado do seu ofício porque nem sempre o Brasil foi justo com ele. Sou contemporâneo do momento em que Pelé decidiu que não jogaria a Copa do Mundo de 1974 e sei o quanto ele foi atacado, o quanto foi alvo de expressões racistas, vindas, quase sempre, de gente de direita, de quem, àquela época, defendia a ditadura militar. Do mesmo modo que vemos, até hoje, o atleta gigantesco ser diminuído por causa dos erros por ventura cometidos, em sua vida particular, pelo homem Edson Arantes do Nascimento.

Uma vez, me permitam a digressão, o jornalista Gonzaga Rodrigues ouviu de Celso Furtado uma dura crítica a Machado de Assis. O professor Celso se queixava do fato de que Machado, sendo preto, não lutou o quanto deveria por seus irmãos afrodescendentes. Gonzaga contra-argumentou, dizendo que Machado já era essa própria luta por ser preto e um escritor da sua dimensão. O raciocínio serve para Pelé, como resposta aos que esperaram dele um engajamento nas lutas contra o racismo. Preto e gênio, Pelé já era a própria encarnação dessa luta. Pelé foi (é) um Rei negro que o Brasil deu ao mundo.

Há pessoas que não gostam de futebol, mas têm profunda admiração por Pelé. Faço parte desse grupo. Vi Pelé jogar em seu tempo e, décadas depois, ainda me emociono com a sua imagem nos campos do Brasil e do mundo. Ainda hoje, quando vejo grandes craques em ação (Messi, Mbappé), lembro que eles estão fazendo o que Pelé já fez sem os gramados, as chuteiras e as bolas atuais. Fomos contemporâneos de jogadores incríveis – Maradona, Zico, Ronaldo. Se eles estão no mais alto patamar do futebol, é necessário reconhecer que Pelé foi além deles.

“No momento em que a bola chega aos pés de Pelé, o futebol se transforma em poesia”, disse dele o grande cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Pelé não foi um homem comum. Pelé não foi um atleta comum. É justo que Pelé tenha sido chamado de Rei. Pelé foi uma das encarnações do que o Brasil produziu de melhor, de mais positivo, de mais rico, de mais bonito, de mais afirmativo. Produziu e legou ao mundo como símbolo de um país e do seu povo.

Esse 29 de dezembro de 2022, o dia em que Pelé morreu, é um dia muito triste para todos nós, brasileiros. Mas a sua morte deve chamar nossa atenção para as belezas do Brasil, para o quanto devemos preservá-las, reverenciá-las e amá-las. Só assim, seremos justos com homens gigantes da dimensão do Rei Pelé.

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