Madonna, com Anitta e Pabllo Vittar, dá uma porrada segura na cara da caretice nacional
Gal Costa não curtia Madonna. Nem a voz nem as músicas nem os álbuns. Está num trecho de uma entrevista que aparece nas redes sociais. A gente sabe que nossa grande cantora gostava mesmo era de Ella Fitzgerald. Mas Gal admirava e respeitava Madonna pelo conjunto de atitudes.
Não apreciar a música de Madonna é uma questão de gosto. Pode faltar identificação, pode faltar afinidade com aqueles sons que vêm lá da década de 1980. Mas é bacana quando alguém como Gal menciona a atitude e enxerga nesta a extraordinária dimensão de uma artista como Madonna.
Como Gal, você pode não gostar da voz nem das músicas nem dos álbuns, mas é importante se você reconhece a excelência do que Madonna faz. Seu show, sábado (04) em Copacabana, é o retrato dessa excelência e do perfeccionismo de quem ama o que faz e tem profundo respeito pelos milhões de fãs espalhados pelo mundo.
A homenagem aos que morreram por causa da aids foi tocante porque a gente viu pessoas próximas morrendo de aids, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990. E a gente viu pessoas famosas, artistas do cinema e da televisão, grandes nomes da música popular, vencidas por um vírus que era uma sentença de morte.
A presença de Cazuza e Renato Russo no telão (em Live To Tell) emocionou a multidão porque eles eram celebridades do rock brasileiro e eram muito populares. Na minha cinefilia, confesso que um rosto pouco conhecido me tocou muito: o de Leon Hirszman, o cineasta de São Bernardo e Eles Não Usam Black Tie.
Num outro momento do show, havia pretas e pretos no telão. A luta das pretas e pretos do mundo – outra marca do conjunto de atitudes de Madonna. E lá estavam tanto Pelé e Gilberto Gil quanto Elza Soares, Marta e Marielle Franco. Mas também Abdias do Nascimento, esse incrível ativista dos direitos humanos.
Em Madonna, há o não ao racismo, ao machismo, à homofobia, ao atraso religioso, a todo tipo de preconceito que vimos recrudescer nesse mundo ultradireitizado dos últimos anos. Em Madonna, há o sim à luta das mulheres, das pretas e pretos e, talvez principalmente, da comunidade LGBTQIAP+.
O show de Madonna é uma espécie de autorretrato da artista que está festejando 40 anos de carreira. No palco, através de um passeio pelos seus grandes hits, esse autorretrato tem começo, meio e fim e, como espetáculo, tem um conceito meticulosamente pensado e minuciosamente executado.
Madonna não está usando banda. Madonna usa sons pré-gravados. É verdade, e muita gente criticou. Mas isso, como crítica, não tem a menor importância no formato de show que Madonna faz. É uma opção legítima dela. Faz parte do modo com que ela e seus companheiros se apresentam e usam o palco.
Um momento especialmente belo foi aquele do “encontro” de Madonna com Michael Jackson em silhuetas vistas nos telões. Um ícone pop gigantesco como Madonna prestando tributo a um ícone pop gigantesco como Michael Jackson. A fusão de Billie Jean com Like a Virgin a embelezar ainda mais a cena.
Madonna (Foto/Reprodução) botou Anitta e Pabllo Vittar no palco. No Brasil, Anitta e Pabllo Vittar ainda são tratadas de forma extremamente preconceituosa não só por gente conservadora. Também por gente de esquerda, por progressistas e pelos chamados ouvintes de bom gosto da música popular brasileira.
No fundo, há homofobia e racismo estrutural nesse tipo de preconceito. E, no caso específico de Anitta, há uma rejeição à sua origem pobre e às origens do funk produzido por pretas e pretos das comunidades do Rio de Janeiro. Um dia, 100 anos atrás ou um pouco mais, se deu o mesmo com o samba.
Madonna chancelou Anitta (em Vogue) e Pabllo Vittar (em Music) ao botá-las no seu palco. As duas – Anitta e Pabllo – brilharam ao lado de Madonna. Pabllo Vittar mais ainda porque entrou de verde e amarelo dizendo, de uma vez por todas, que a gente precisa entender que o verde e o amarelo não pertencem à extrema-direita.
É muito justo que as pessoas se emocionem com o simbolismo que há nas imagens de Madonna com Pabllo Vittar e o verde e amarelo. Mas, com o perdão das leitores e dos leitores da coluna, pensei que esse problema do verde e amarelo e da camisa da Seleção tinha sido solucionado com a vitória e a posse do presidente Lula.
É importante que Anitta e Pabllo Vittar tenham a chancela de Madonna. Admiravelmente vitoriosas, é sensacional vê-las participando do show de Madonna. Não deixa de ser triste, no entanto, constatar que elas ainda precisam disso para que conquistem o respeito de muita gente, se é que vão conquistar.
Em Music, havia samba e funk na batida de meninas e meninos, percussionistas mirins arregimentados por Pretinho da Serrinha, craque do samba. Em Copacabana, não por acaso, Madonna fez a coisa certa ao dialogar com esse Brasil num Brasil cindido. E, vista por milhões na TV aberta, deu uma porrada segura na cara da caretice nacional.