Pai de mais de 40 filhos, o “homem família” era o maior baixista de reggae do mundo
Morreu Aston Barrett. Tinha 77 anos e enfrentou uma longa enfermidade. O músico nasceu em Kingston, na Jamaica, e morreu em Miami, na Flórida, no sábado passado, três de fevereiro de 2024. Entre o nome Aston e o sobrenome Barrett, ele usava Family Man.
Family Man. Isso aí faz parte do ponto em que a realidade se confunde com a lenda na vida de Aston. Homem família – ele assim era chamado por ter sido pai de uma quantidade inacreditável de filhos. Teve, reza a lenda, mais de 40 filhos com – naturalmente – várias mulheres.
Aston Family Man Barrett era baixista. E era irmão do baterista Carlton Barrett. Dois gigantes do reggae. Digamos, dois gigantes da “cozinha” do reggae. Aston e Carlton foram integrantes da banda de Bob Marley, The Wailers.
O baixo de Aston e a bateria de Carlton ajudaram a definir o som do reggae, o ritmo do reggae. Maior de todos os nomes do reggae, o Bob Marley que conhecemos nas gravações de estúdio e nas performances ao vivo por certo deve muito aos irmãos Barrett.
O baixo que se ouve no reggae Vamos Fugir (Gimme Your Love), grande hit de Gilberto Gil, é dele. Aston Barrett foi, muito provavelmente, o maior baixista de reggae do mundo. A sua morte me trouxe muitas lembranças do reggae e da presença do ritmo jamaicano na minha vida de ouvinte de música.
Não é de Bob Marley a primeira lembrança que tenho da Jamaica e da sua música. E sim das imagens e dos sons de Dr. No, o filme que, em 1962, inaugurou a franquia do agente 007. Ainda não é reggae o que ouvimos na aventura de James Bond, são algumas das suas fontes.
Reggae mesmo, ouvi quando o single Vietnam, de Jimmy Cliff, se incorporou à minha discoteca, por volta de 1970. E já ouvira, sem saber do que se tratava, em 1968, ano em que os Beatles gravaram Ob-la-di Ob-la-da, uma versão branca do ritmo com que Marley conquistou o mundo.
A gravação dos Beatles não tem a “pegada” dos originais jamaicanos. Falta molho. Aponta, porém, para a força do fenômeno. E inaugura o que se consolidaria na década de 1970: a inequívoca adesão dos brancos à invenção que veio da Jamaica.
Paul Simon, Paul McCartney, John Lennon, os Rolling Stones, Eric Clapton, Elton John, Led Zeppelin, Bob Dylan. Todos gravaram reggae.
Numa entrevista que me deu há mais de 30 anos, Jimmy Cliff fez duras críticas à versão branca do reggae, mas não custa reconhecer que os grandes nomes do pop/rock internacional ajudaram a popularizar ainda mais a música criada pelos pretos jamaicanos.
O melhor do reggae está em Bob Marley, nos discos que gravou durante a década de 1970. Eles sintetizam a força do ritmo que os jamaicanos legaram ao mundo da música popular, exercendo uma influência notável sobre muito do que foi produzido depois por pretos e brancos.
Cliff pode até ter razão na crítica ao que os astros brancos do pop/rock fizeram com o reggae. Pode estar certo ao afirmar que ninguém faz tão bem quanto os pretos, que criaram e têm o domínio total da fórmula.Mas é necessário admitir que a adesão de artistas como Clapton e Dylan, Simon e os Rolling Stones deu uma projeção internacional ao ritmo jamaicano que não pode ser desconsiderada.
O primeiro artista brasileiro a colocar a palavra reggae na letra de uma canção foi Caetano Veloso. Em Nine Out of Ten, composta e gravada no exílio londrino. Está no LP Transa, de 1972. A descoberta, no entanto, não foi dele, e sim de Gilberto Gil em suas andanças pela Londres da virada dos anos 1960 para os 1970.
Mais tarde, Gil verteria para o Português No Woman No Cry, do repertório de Bob Marley, que, em 1979, nos extertores da ditadura brasileira, transformou-se num dos hinos da anistia. Foi Gil que apresentou o reggae a Dominguinhos durante a turnê Refazenda, e ouviu do extraordinário sanfoneiro uma definição tão simples quanto verdadeira: “É um xotezinho safado”.
O comentário de Dominguinhos remete a uma semelhança fácil de ser constatada. E antecipa o que ocorreria muito tempo depois. No início dos anos 2000, Gil gravou dois tributos: um a Luiz Gonzaga, o outro a Bob Marley. Um deu sequência ao outro. Mais do que isto: em algumas versões das músicas de Marley, Gil inseriu elementos da música nordestina. No ritmo, na melodia, até no uso da sanfona.
Mesmo que muitos cantem e toquem reggae no Brasil, é de Gilberto Gil o mérito de tê-lo difundido entre nós. Sua versão de No Woman No Cry acabou por incorporar-se ao seu repertório como se a canção tivesse sido escrita por ele.