O Século do Globo não esconde erros do jornal agora centenário
Tão ingênuo quanto desejar que os grandes veículos de comunicação do Brasil sejam progressistas, e não conservadores, é não reconhecer a importância deles nem o quanto são necessários para a manutenção da nossa democracia.
Exatamente do jeito que eles são e com os conteúdos que produzem e que consumimos. Com seus erros e seus acertos. Com seus defeitos e suas virtudes.
Pensei nisso na semana passada, na noite em que, por causa da taxação de 50 por cento anunciada por Donald Trump, o presidente Lula trocou um pronunciamento oficial em cadeia de rádio e televisão por uma entrevista no Jornal Nacional.
Lula foi entrevistado por quase 15 minutos no Jornal Nacional. Fiz televisão por 25 anos da minha vida profissional e sei que não é pouco. Como sei o alcance que tem.
Voltei a pensar nisso depois que vi, no Globoplay, o especial sobre os 100 anos do jornal O Globo. Digamos que é um autorretrato dividido em quatro episódios de 50 minutos.
É um autorretrato do jornal fundado em 1925 por Irineu Marinho e um retrato do seu filho Roberto Marinho, que dedicou a vida ao vespertino depois transformado em matutino e gostava de ser identificado como “o jornalista Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo”. Jornalista no lugar de empresário.
O especial, que dura pouco mais de 200 minutos, foi exibido na semana passada pela TV aberta e agora pode ser visto integralmente no streaming. A narrativa mistura documentário com momentos encenados. Tony Ramos é quem faz Roberto Marinho na fase madura.
Como conteúdo que celebra os 100 anos do jornal O Globo, claro que o especial adota um tom claramente apologético, sobretudo da figura de Roberto Marinho. Não poderia ser de outro modo. Mas isso não é um defeito, nem o torna menos interessante.
O Século do Globo é um projeto concebido pelo jornalista Pedro Bial, que aparece também entre os entrevistados. É apologético, sim, mas não esconde os episódios que, historicamente, fizeram do grupo alvo permanente das críticas da esquerda.
Hoje, curiosamente, o grupo de comunicação da família Marinho é alvo também da extrema direita que chegou ao poder com a eleição, em 2018, de Jair Bolsonaro.
A campanha contra Getúlio Vargas em sua última passagem pela Presidência, o apoio ao golpe de 64 e à ditadura militar que a ele se seguiu, a relutância em cobrir a campanha das Diretas Já, o apoio à candidatura de Fernando Collor no retorno das eleições diretas, a edição do debate Collor/Lula, a admissão de que o grupo errou ao apoiar a ditadura militar – tudo isso está em O Século do Globo.
É estratégico e, por isso, é ruim – dirão os críticos ferrenhos da Globo. OK, é estratégico, sim. Mas, e o que não é? Prefiro dizer que, a despeito de ser estratégico, é positivo porque traz uma autocrítica que os detratores do grupo certamente não teriam a coragem de fazer se estivessem tratando das próprias histórias.
No terceiro episódio, quem reconhece a importância de Roberto Marinho não é nenhum dos seus amigos, mas o presidente Lula, que estava em seu primeiro mandato, e Leonel Brizola, o maior adversário do Dr. Roberto nos 20 anos finais da vida de ambos.
“Dos meus comunistas, cuido eu”, a célebre frase de Roberto Marinho em resposta aos militares que questionavam a presença de comunistas em suas empresas, não poderia ficar de fora da narrativa de O Século do Globo. E não ficou.
O elenco de entrevistados vai dos filhos João Roberto, José Roberto e Roberto Irineu aos muitos jornalistas que conviveram profissionalmente com Roberto Marinho.
No último episódio, que traz perguntas e sugere reflexões sobre questões como o futuro do jornalismo e o uso da inteligência artificial, duas presenças chamaram minha atenção: das jornalistas Flávia Oliveira e Míriam Leitão.
Mulher preta e feminista, Flávia Oliveira, com o lugar de fala que tem, enriquece O Século do Globo trazendo para o projeto temas como o racismo e a misoginia.
Já Míriam Leitão insere em O Século do Globo o tema da tortura praticada pela ditadura militar. Míriam foi presa e torturada aos 19 anos, e, grosseiramente, Jair Bolsonaro mentiu quando negou a violência cometida contra a jornalista.
A um só tempo, o protagonismo dado a Míriam Leitão no desfecho de O Século do Globo contém um não aos regimes de exceção e às suas práticas inaceitáveis e um sim à manutenção da democracia.
São temas que seguem na ordem do dia no Brasil de 2025. E que devem estar na agenda de todas e todos que fazem jornalismo profissional.