RETRO2023/Elis e Tom, Meu Nome é Gal
Um documentário. Elis e Tom. Uma cinebiografia. Meu Nome é Gal. Vi no cinema e gosto muito dos dois. Estão na minha retrospectiva de 2023.
Elis e Tom, o disco, é de 1974. Elis e Tom, Só tinha de ser com você, o filme, é de 2023. 49 anos separam um do outro. Esse distanciamento faz toda diferença. Permite que todos, os que estão na tela e os que estão nas poltronas, vejam com mais clareza e lucidez o que, em fevereiro e março de 1974, se passou naquele estúdio de Los Angeles, onde Antônio Carlos Jobim, aos 47 anos, e Elis Regina, aos 29, gravaram um dos grandes discos da música popular brasileira.
O jornalista, escritor e agora membro da Academia Brasileira de Letras Ruy Castro disse que Elis e Tom pode ser o melhor documentário produzido no Brasil. Autor do livro Chega de Saudade, louco por bossa nova, Ruy Castro é suspeito. Mas bem que ele não exagerou nos elogios que fez depois de ver o filme numa sessão especial para os imortais da ABL. O melhor documentário é muito, mas Elis e Tom, sem qualquer exagero, é deslumbrante, magnífico, lindo. Comove e emociona.
Contemporâneos do disco em seu lançamento (sou um deles) devem lembrar que o álbum que reunia Elis Regina e Tom Jobim não nasceu clássico. Quem comprou e ouviu o LP em 1974 há, no entanto, de ter a recordação de como ele foi se cristalizando, crescendo e se confirmando como uma verdadeira obra-prima da música popular do Brasil. Afinal, registrava o único encontro da nossa maior cantora com o nosso maior compositor popular.
Dirigido por Roberto de Oliveira, Elis e Tom, o filme, tem o olhar da época através das imagens captadas em 16 mm enquanto o disco era gravado. E tem o olhar de hoje por intermédio dos depoimentos de quem estava lá ou, mesmo não estando (Roberto Menescal, Andre Midani), esteve diretamente envolvido com a produção. É crucial o fato de que Roberto de Oliveira era empresário de Elis em 1974. No documentário, ele mistura com absoluto êxito a figura do diretor com a de personagem, contando parte da história.
Como cinema documental, Elis e Tom é um filme muitíssimo bem resolvido. Alguém quis compará-lo a Get Back, o documentário de Peter Jackson sobre a gravação do álbum Let It Be, dos Beatles. É curiosa a comparação, mas pouco pertinente. A filmagem da gravação do disco dos Beatles, em 1969, já fazia parte de um pacote, tanto que Jackson trabalhou em cima de quase 60 horas filmadas. As imagens da gravação de Elis e Tom se deram quase que acidentalmente e geraram menos de cinco horas de material.
Peter Jackson editou o que já existia em áudio e vídeo. Roberto de Oliveira foi atrás dos sobreviventes para juntar os depoimentos atuais deles ao que foi produzido na época. Acrescentou fragmentos de performances ao vivo de Elis e de Tom, separados, antes da gravação do disco. Elis na Europa, tentando uma carreira internacional que não houve. Tom, já consagrado, cantando com Frank Sinatra, o maior cantor popular do século XX. O resultado é brilhante.
Vi Elis e Tom pensando em quão importante é se ter um filme assim no Brasil, um país que investe tão pouco em memória. Parece até inacreditável. Mas vi também pensando no quanto nós, os brasileiros, vivemos – citando aqui o Caetano Veloso de Americanos – entre a delícia e a desgraça, o monstruoso e o sublime. O Brasil que nos lega artistas como Tom Jobim e Elis Regina é o mesmíssimo país no qual o eleitor põe a escória no poder e, com 58 milhões de votos, quase põe de novo.
Contemporâneos do disco Elis e Tom (sou um deles), pessoas que, para além dessa contemporaneidade, viram Elis Regina e Tom Jobim ao vivo (estou entre elas) recebem esse filme de Roberto de Oliveira com um misto de saudade e incontida alegria. Diria que mais alegria do que saudade. O documentário é honestíssimo ao expor os conflitos que marcaram a gravação do álbum, mas acaba por nos dizer que a beleza e a grandeza da música felizmente se sobrepuseram ao choque entre os talentos e as vaidades dos artistas.
Elis tinha um temperamento muito difícil. Tom era um semideus. Entre eles, César Camargo Mariano, pianista, diretor musical e marido de Elis, não era ninguém. Faltou química, e isso quase inviabiliza o projeto. O filme vende a imagem de que houve um momento em que o que era amargo ficou doce. Não sei se é verdade, mas há o fato incontestável de que o disco foi gravado e é perfeito. O documentário dialoga com uma geração. Será fundamental se conseguir dialogar com o jovem espectador de cinema e atual consumidor de música.
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Meu Nome é Gal, o filme de Dandara Ferreira e Lô Politi, estava sendo concluído quando Gal Costa morreu, aos 77 anos, em novembro de 2022. Com a morte da cantora, as duas diretoras fizeram algumas mudanças na cinebiografia, que chega ao público com um poder de emocionar certamente maior do que teria se a protagonista estivesse viva.
Parto do pressuposto de que as cinebiografias não são grande cinema. Digamos que é um subgênero que pode gerar filmes muito bons. Meu Nome é Gal é um deles. Um filme e suas circunstâncias – digamos assim.
Meu Nome é Gal é um recorte da vida da artista. Vai de 1966, quando Gal, aos 21 anos, trocou Salvador pelo Rio de Janeiro, até 1971, no momento da estreia do show Fa-tal. O que vemos depois, fechando o filme, é um breve tributo que Dandara e Lô fazem a Gal.
Meu Nome é Gal é o que suas realizadoras quiseram que fosse. Isso é tão óbvio, e o público há de aceitar que seja assim. Depois da sessão, ouvi de um espectador que Sophie Charlotte não tem o sorriso de Gal. Uma espectadora disse que sentiu falta da voz de Gal, já que é a atriz que canta boa parte dos números.
Ouço Gal Costa desde 1969 – eu tinha 10 anos, e foi o ano em que ela lançou seu primeiro disco – e não senti falta de nada. O filme e suas escolhas. Não tem isso (o mega sucesso Que Pena), não tem aquilo (Não Identificado), mas tem uma história muito bem narrada dos primeiros anos da vida pública de Gal Costa.
Meu Nome é Gal se debruça sobre a jovem que deixou Salvador para se tornar uma cantora profissional a partir do Rio de Janeiro e de São Paulo. Sendo assim, insere a personagem no movimento tropicalista, da qual fez parte ao lado dos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil. E, inevitavelmente, fala do Brasil sob a ditadura militar iniciada em 1964.
É um filme honestíssimo. Alegra, entristece, comove, pode provocar lágrimas – depende da sensibilidade do espectador e dos seus vínculos com a trajetória de Gal.
É também um filme muito necessário pelo reencontro que promove com o Brasil, suas belezas e suas feiuras. O Brasil que produz Gal Costa é o mesmo no qual vozes vindas de suas regiões profundas aplaudiam um regime de exceção.
A Gal vista por Dandara e Lô está situada com muita propriedade entre o desejo de cantar, de tornar pública a sua voz cristalina, e o desafio de se inserir num contexto histórico marcado por extrema violência política.
O tropicalismo é um projeto desafiador e ousado arquitetado sobretudo por Caetano e Gil como enfrentamento à caretice que dominava a cena musical brasileira. A prisão e o exílio dos dois levou Gal a ser porta-voz do que restou do movimento.
Sophie Charlotte encanta e conquista como Gal, enquanto Rodrigo Lelis está ótimo como Caetano. As pessoas que naquele momento fizeram parte da vida de Gal estão todas no filme, em maior ou menor dimensão.
Preste atenção, alguns nomes são mencionados para facilitar a identificação: Gilberto Gil, Maria Bethânia, Dedé e Sandra Gadelha, Guilherme Araújo, Waly Salomão, Jards Macalé, Rogério Duarte, Torquato Neto, Capinan, Dona Mariah, Os Mutantes, Rogério Duprat, Tom Zé.
Foi ao lado de todos esses nomes, nem todos artistas, que Gal se consolidou como uma das grandes cantoras do Brasil. Vê-la biografada na tela do cinema é impactante porque só faz um ano da sua morte.
A cena da gravação de Baby, essa linda canção de Caetano, me tocou muito particularmente. Tem aquele clima no estúdio, tem Duprat dando instruções aos músicos, tem a voz de Gal no lugar da de Sophie. É forte evocação de um tempo. E fala do poder da música de permanecer guardada nas nossas memórias através dos anos.
“Baby, baby, há quanto tempo…”.