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RETRO2023/Spielberg e Scorsese

No começo de 2023, Os Fabelmans, de Steven Spielberg. Perto do final, Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese. Spielberg e Scorsese, dois mestres do cinema contemporâneo. Na retrospectiva do ano, minhas impressões sobre os dois filmes.

No começo de Os Fabelmans, o pai e a mãe levam o pequeno Sam ao cinema. A família vai ver O Maior Espetáculo da Terra, que Cecil B. DeMille realizou em 1952. O garoto está com medo das figuras gigantescas que aparecerão na tela grande. O pai, que é homem da ciência, tenta tranquilizá-lo com uma explicação técnica do que é o cinema e de como é possível ter as imagens em movimento. A mãe, que é pianista, também busca acalmar o menino, mas seus argumentos são outros, são sobre a magia, a fantasia do cinema. Ainda na fila, Sam se vê diante de duas visões divergentes, definidoras do cinema que faria muitos anos depois, já adulto. Os Fabelmans tem muito de uma autobiografia. Sam é, com algumas licenças, o menino/adolescente Steven Spielberg.

Penso que muitos cineastas têm na memória afetiva o seu O Maior Espetáculo da Terra. É provável que Cidadão Kane seja o de François Truffaut, se levarmos em conta que, em A Noite Americana, o diretor vivido por Truffaut tem um sonho recorrente com um garoto a roubar, da frente de um cinema, os cartazes do aclamado filme de Orson Welles. Se sairmos dos cineastas e formos para um compositor de música popular como Caetano Veloso, foi Sansão e Dalila, também de Cecil B. DeMille, que representou em sua infância o que O Maior Espetáculo da Terra representou na de Spielberg. Nós, que não somos artistas nem nada, também temos direito ao nosso filme definidor de muita coisa. O meu foi 2001: Uma Odisseia no Espaço.

Em Os Dez Mandamentos, antes do início do filme, Cecil B. DeMile (novamente ele!) dirige uma pequena mensagem ao público. Spielberg faz a mesma coisa na abertura de Os Fabelmans: dirige algumas palavras à plateia, um pequeno agradecimento aos que saíram de suas casas e foram ver o filme no cinema, que ainda é o melhor lugar para assistir a um filme. Spielberg também apresenta Os Fabelmans como o mais pessoal de todos os títulos da sua extensa filmografia, uma homenagem à sua família e uma declaração de amor ao cinema. O filme começa, então, com um duplo tributo a Cecil B. DeMille. Primeiro, pelo formato que Spielberg adotou para se comunicar com o espectador. Segundo, pela escolha de O Maior Espetáculo da Terra.

É pertinente observar que Cecil B. DeMille é muito criticado pelo “cinemão” a que se dedicou. Mas é injusto não reconhecer que DeMille desempenhou papel importantíssimo na consolidação da indústria do cinema e também na formulação de uma linguagem para os grandes épicos como Sansão e Dalila e Os Dez Mandamentos. Não faz tanto tempo assim, revi Os Dez Mandamentos, com suas quase quatro horas de projeção, e fiquei admirado diante da fluidez da sua narrativa. O tributo de Spielberg a DeMille pode ter outra explicação: o realizador de Tubarão e E.T. faz cinema há mais de meio século, conquistou um público imenso, ganhou prêmios e fez fortuna, mas ainda não é uma unanimidade, ainda não é tão respeitado como merece ser.

Os Fabelmans é uma declaração de amor ao cinema (como A Noite Americana, de François Truffaut, ou como A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese), mas é, muito fortemente, um filme sobre a família do menino/adolescente Spielberg. Como, na vida real, Mimi, a tia de John Lennon, dizia que John jamais ganharia a vida com uma guitarra, na ficção, o pai de Sam vê como mero hobby o interesse do garoto pela realização de pequenos filmes amadores, diferente da mãe, pianista frustrada, que puxa o filho para a compreensão do sentido da arte. Muito significativa é a rápida visita que um tio da mãe faz à casa dos Fabelmans. É ele que, entre verdades e mentiras, fala ao jovem Sam sobre o quanto existe de solidão e de dor na expressão artística.

Roman Polanski, que era menino quando a mãe morreu num campo de concentração, esperou pela velhice para contar parte da sua história em O Pianista. Não seria a mesma coisa se o tivesse feito em sua juventude. Lembrei deles – o cineasta e seu relato quase autobiográfico – quando vi Os Fabelmans. Steven Spielberg já tem quase 80 anos. Ele esperou todo esse tempo para se debruçar sobre a história da sua vida e os fatos que o conduziram a ser um dos grandes cineastas do mundo. Podemos dizer que seu filme começa com Cecil B. DeMille e termina com aquele que foi (é) o maior de todos os cineastas americanos: John Ford. Não vou cometer spoiler, mas digo que faz rir e chorar a cena em que Sam se encontra com Ford, em notável caracterização de David Lynch.

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Em 1973, Robert De Niro tinha 30 anos quando foi dirigido pela primeira vez por Martin Scorsese em Caminhos Perigosos. De lá até Assassinos da Lua das Flores, fizeram 10 filmes juntos.

Em 2002, Leonardo DiCaprio tinha 28 anos quando foi dirigido pela primeira vez por Martin Scorsese em Gangues de Nova York. De lá até Assassinos da Lua das Flores, fizeram seis filmes juntos.

Scorsese nunca tinha trabalhado com De Niro e DiCaprio num mesmo filme. Está fazendo pela primeira vez em Assassinos da Lua das Flores.

De Niro mais contido do que DiCaprio, os dois em soberbas atuações. Entre eles, há a indígena Lily Gladstone, uma atriz de 37 anos que, no papel da indígena Mollie, fala com olhares e expressivos silêncios.

Martin Scorsese, 80 anos, é pensador do cinema e realizador de cinema.

Assassinos da Lua das Flores não é um filme sobre cinema, mas é uma aula sobre como se faz cinema. Dizem que um filme precisa de 30, 40 anos para que conquiste o status de clássico. Assassinos da Lua das Flores dá a sensação de que já nasceu clássico.

Scorsese é alucinado por cinema, mas também é louco por música. Já juntou os dois algumas vezes em documentários como The Last Waltz, No Direction Home, Shine a Light, Living n the Material World e Rolling Thunder Revue.

Quando era muito jovem e ainda desconhecido, esteve envolvido na realização de Woodstock e Elvis on Tour. E admite que a música de The Band em The Last Waltz o ajudou na montagem das cenas de luta de Touro Indomável, uma das suas obras-primas.

Cinema e música. Ficção e documentário. O cinema dos Estados Unidos, onde nasceu e trabalha. O cinema do mundo, que observa e ama. Scorsese não é uno. Scorsese é plural. Assassinos da Lua das Flores fala disso.

O novo filme de Martin Scorsese mistura vários gêneros. É um drama e uma história de amor. É um filme de suspense, mas não de mistério, seguindo o método hitchcockiano, que não esconde os segredos do espectador e sim dos personagens.

Assassinos da Lua das Flores tem algo dos filmes de gangster e também dos filmes de tribunal, além daqueles de investigação policial. Há quem veja nele o primeiro western de Scorsese, mas não é. Ambientado nos anos 1920, quase nada tem dos chamados westerns crepusculares.

São imensamente belas as imagens da descoberta do petróleo, do fogo na fazenda e da cena final.

É extremamente eficiente a inserção das imagens em preto e branco no estilo do período silencioso do cinema, que remete à época em que o filme se passa e aprofunda o diálogo com os primórdios do cinema, que Francis Ford Coppola já trazia, três décadas atrás, no seu admirável Drácula de Bram Stoker.

A radionovela do desfecho põe Scorsese em cena e também remete às intertextualidades possíveis em Assassinos da Lua das Flores.

Esse filme de 3 horas e 26 minutos é longo, mas não cansa o espectador. É que Scorsese tem, desde sempre, absoluto domínio da narrativa cinematográfica.

Comentei a forma e não o conteúdo. Com violência e poesia, Assassinos da Lua das Flores se debruça sobre a tragédia da nação indígena Osage e seu extermínio. Joga luzes sobre uma história que o mundo precisa conhecer e fala do presente falando do passado.

Nos créditos finais, há uma dedicatória a Robbie Robertson, o guitarrista de The Band, que morreu agora em 2023. Robbie, que, na década de 1970, Scorsese filmou tão jovem em The Last Waltz. A trilha de Assassinos da Lua das Flores foi seu último trabalho.

Assassinos da Lua das Flores é o cinema tal como Martin Scorsese compreende e materializa essa expressão artística do século XX. Os filmes que dirige explicam suas críticas contundentes aos filmes da Marvel e similares. Esses jamais representarão o ofício ao qual Scorsese dedicou seu amor e sua vida.

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