Remember John
O tempo passou. Se estivesse vivo, John Lennon seria um velho senhor de 83 anos, juntando os recortes da trajetória com os Beatles e com Yoko Ono, numa casa à beira do mar da Irlanda – como sonhou certa vez. Ou estaria no apartamento do Dakota, em Nova York, compondo e gravando canções. Ele se foi no final daquela noite trágica de oito de dezembro de 1980, 43 anos nesta sexta-feira, oito de dezembro de 2023. Tinha 40 anos e acabara de gravar um disco – Double Fantasy – no qual alternava as suas novas composições com as de Yoko. Era a dupla fantasia do casal que, uma década antes, usara o leito nupcial para pedir cantando que o mundo desse uma chance à paz.
Alguém já disse que os Beatles foram a maior invenção de John Lennon. Mais do que as canções que compôs, mais do que a militância política que assumiu a partir do final da década de 1960, mais do que a mistura de rock e vanguarda que promoveu. O grupo foi o caminho encontrado para canalizar as dores da infância e da adolescência, traduzidas mais tarde em Mother, canção desesperada, de melodia repetitiva e letra concisa, sinos sombrios na abertura, arranjo instrumental mínimo e gritos primais. Os Beatles surgiram no final dos anos 1950, comandados por Lennon. Ao seu lado, Paul McCartney e George Harrison, como ele, garotos de Liverpool apaixonados pelo rock’n’ roll que os americanos produziram a partir do surgimento de Elvis Presley. Ringo Starr viria em 1962, quando o quarteto estava prestes a gravar o primeiro disco.
Na época, era difícil imaginar que os Beatles dos primeiros registros fonográficos se transformariam no maior grupo da história do rock e num fenômeno de influência gigantesca sobre a música popular produzida em seu tempo e também sobre o comportamento do público jovem que consumiu as suas canções. A despeito desta dificuldade, Lennon intuiu que o rock seria o que os Beatles fizessem dele. E foi. Como confirmam a permanência do seu repertório na memória afetiva de milhões de pessoas e a lembrança ainda muito nítida de tudo o que representaram.
John Lennon não foi o melhor músico entre os quatro Beatles. Este título é de Paul McCartney. Mas foi a personalidade mais importante do quarteto. Começou como um bad boy que cantava rocks primitivos. Mais tarde, influenciado por Bob Dylan, passou a escrever letras que falavam de suas dores. Aos 25 anos, compôs In My Life como se fosse um homem velho enxergando de longe os amores, os amigos e os lugares que marcam uma vida. Rock, política, religião, drogas, arte de vanguarda – há tudo isto no artista que amadureceu rapidamente, se compararmos o início da carreira dos Beatles com a fase final, e que encontrou em Yoko Ono uma grande parceira para levá-lo a fazer o que poucos fizeram no mundo do rock.
Strawberry Fields Forever, que compôs sozinho, sem a ajuda de Paul McCartney, flagra os Beatles no ponto alto da sua criatividade. A melodia enigmática, a letra escrita a partir de uma lembrança da infância em Liverpool, o arranjo deslumbrante de George Martin – ali está Lennon em seu melhor com os Beatles. Mais tarde, John Lennon/Plastic Ono Band surge como um dos grandes discos do rock. A crueza das melodias, a concisão das letras, os arranjos mínimos, o grito primal transportado do divã de Arthur Janov para o estúdio, os temas cruciais que afligiam o artista e sua geração – após a dissolução dos Beatles, ninguém (nem o George de All Things Must Pass, nem o Paul de Band on the Run, muito menos Ringo) fez nada parecido. E ainda havia God, em cuja letra negava tudo e todos. A religião, os mitos, os heróis, os ídolos, Elvis, Dylan, Beatles. Na parte final da canção, John pronuncia a frase que se tornaria emblemática para uma geração: o sonho acabou. As ideias generosas que marcaram a década de 1960 não seriam postas em prática num mundo pragmático e desigual.
Os Beatles ficaram juntos por apenas sete anos, de 1962 a 1969. A carreira solo de John Lennon durou somente cinco anos, de 1970 a 1975. Os cinco que se seguiram foram de reclusão e silêncio. A volta, no disco Double Fantasy, foi brutalmente interrompida no final da noite de oito de dezembro de 1980, com o assassinato do artista em frente ao edifício Dakota, em Nova York. Ao reouvi-lo hoje, juntamos os recortes da sua trajetória. Como ele desejava fazer na velhice. Em frente ao mar da Irlanda.