Ainda Estou Aqui é o mais contundente dos filmes sobre (e contra) a ditadura brasileira
Os nomes são fictícios, mas a história é verdadeira. No início da década de 1970, Afonso e Juvenal faziam o científico numa escola pública. Os dois iam lá em casa conversar sobre política com meu pai e ouvir música comigo. Um tinha 18 anos. O outro tinha 17.
Denunciados por causa do conteúdo de um jornalzinho que produziram no colégio, os rapazes foram presos pelo regime militar. Onde estavam? Sofreram tortura? – pouco se sabia sobre o sumiço deles. Apenas que estavam presos.
Um dia, Afonso e Juvenal foram soltos. Afonso ficou com sequelas de ordem emocional. Encontrei com ele algumas vezes na rua e ouvi sempre a mesma pergunta: “Seu pai ainda lembra de mim?” Eu respondia que sim e dizia que fosse lá em casa. Jamais foi.
De Juvenal, nunca mais tive notícias. Desapareceu do nosso convívio. Uns 30 anos depois, o identifiquei no meio de um grupo de homens que faziam a manutenção no sistema de ar condicionado da TV Cabo Branco. Vi de longe e respeitei o seu silêncio.
Afonso e Juvenal. Lembrei deles vendo Ainda Estou Aqui. Afonso e Juvenal eram figuras anônimas e sobreviveram à violência da ditadura. Ainda Estou Aqui conta a história de Rubens Paiva. Engenheiro, ex-deputado, figura pública, Rubens Paiva não sobreviveu. Aos 41 anos, em janeiro de 1971, foi levado de casa e morto pelo regime militar.
Ainda Estou Aqui toma como base o livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Marcelo é filho de Rubens e Eunice Paiva. Dirigido por Walter Salles (Terra Estrangeira, Central do Brasil, Abril Despedaçado), o filme aguarda uma indicação ao Oscar.
A primeira parte de Ainda Estou Aqui tem luz e alegria. Mostra Rubens e Eunice, suas quatro meninas e um único menino morando no Rio, numa confortável casa em frente ao mar. A família recebe os amigos, as meninas dançam ao som de Je T’aime, Moi Non Plus, todos dançam ouvindo o Juca Chaves de Take Me Back To Piauí.
A história da família muda, e o filme também muda a partir do dia em que Rubens Paiva é arrancado de casa para prestar um depoimento e não volta nunca mais. Ainda Estou Aqui se debruça, então, sobre a luta de Eunice Paiva para encontrar o marido. Eunice em grande atuação de Fernanda Torres, que Walter Salles dirigira em Terra Estrangeira.
Alguns momentos musicais me guiaram enquanto vi Ainda Estou Aqui. Primeiro, a evocação de um tempo que há em Je T’aime, Moi Non Plus, a canção erótica cantada pelo casal Jane Birkin e Serge Gainsbourg, que hoje soa tão ingênua.
Depois, o Tom Zé bem pouco lembrado de Jimmy, Renda-se – “Bob Dica, diga/Jimmy renda-se”. E sobretudo o Erasmo Carlos de É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo, que é politicamete muito forte e na época nem parecia ser.
Há as capas dos discos (o álbum de estreia do King Crimson, o LP que Caetano Veloso gravou no exílio) e o Caetano de Como Dois e Dois, cantada em 1971 por Roberto Carlos. “Tudo vai mal…” – ouve-se no rádio do carro quando Vera, a filha mais velha de Rubens e Eunice, volta da temporada que passou na Inglaterra.
Antes, nas cartas para a família, Vera manda notícias de Londres. Das casinhas parecidas com as de Blow-Up, da faixa de pedestres de Abbey Road, que os Beatles imortalizaram na capa do disco de 1969, e da festa com exilados brasileiros. Gilberto Gil estava entre eles, cantou reggae acompanhando-se ao violão e dançou com a garota.
A segunda parte de Ainda Estou Aqui é sombria. Eunice à procura do marido que não existe mais, somente nas lembranças, o dinheiro ficando escasso, a barra de manter os filhos e o equilíbrio deles diante da ausência do pai. A segunda parte de Ainda Estou Aqui termina quando a família, empobrecida, dá adeus ao Rio e vai para São Paulo.
No salto de 25 anos que o filme dá, vemos que Eunice se tornou advogada, foi defensora dos direitos humanos e do indígenas, e que seu filho Marcelo Rubens Paiva ficou famoso com o livro autobiográfico Feliz Ano Velho, no qual narra o acidente que, aos 20 anos, o deixou tetraplégico. Uma das filhas de Eunice caminha por uma rua de São Paulo, e a gente ouve Caetano: “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”.
Pode parecer estranho, mas a família comemorou quando, em 1996, o governo brasileiro emitiu o atestado de óbito de Rubens Paiva. Comemorou porque trazia oficialmente o reconhecimento da sua morte. O presidente era Fernando Henrique Cardoso.
Há muitos filmes – ficção e documentários – sobre a ditadura iniciada em 1964 e também séries produzidas para a televisão. São importantes e necessários. Mantêm viva a ideia de que a ditadura militar fez mal ao Brasil e dizem que ela não deve ser esquecida.
Ainda Estou Aqui põe na tela grande do cinema o casal Rubens e Eunice Paiva muito fielmente recriado por Selton Mello e Fernanda Torres. No desfecho da narrativa, em silêncio, Fernanda Montenegro faz uma breve aparição como Eunice no fim da vida.
Consumida pelo Mal de Alzheimer, com a memória devastada, Eunice Paiva morreu aos 86 anos em 13 de dezembro de 2018. Era a data do cinquentenário do AI-5, o mais violento instrumento de arbítrio editado pela ditadura brasileira.
Uma história como a de Rubens Paiva não permite que a família se recupere. Quando cada um admitiu que ele estava morto? – a pergunta é posta numa conversa de Marcelo com uma das suas irmãs. Ainda Estou Aqui é o mais contundente de todos os filmes sobre (e contra) a ditadura militar brasileira.