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“O cinema era um espaço de sonho e magia”, diz a premiada escritora paraibana Marília Arnaud

O cinema na sua vida. Pedi, e ela atendeu ao meu pedido. Nesta terça-feira, 21 de novembro de 2023, a premiada escritora paraibana Marília Arnaud enriquece a coluna com seu texto.

O QUE O CINEMA ME DEU

Para Sílvio Osias, João Batista de Brito e Renato Félix

Meu fascínio pelas Artes me acompanha desde os primeiros anos de vida; livros, filmes e vinis ocupam um largo espaço em minhas memórias de infância e adolescência. Em casa, tínhamos uma boa biblioteca – meu pai era leitor de ficção e filosofia –, e os discos, numa mesinha ao lado da radiola, iam de Silvio Caldas, Emilinha Borba, Orlando Silva, Elza Soares, Francisco Alves, Nelson Gonçalves – os preferidos do meu pai – a Roberto Carlos, Vinicius de Moraes e Luiz Gonzaga – os da minha mãe. Chico Buarque, Elis Regina, Raul Seixas, Secos & Molhados, entre outros, chegaram mais tarde, no início da minha adolescência. A ida ao cinema ocorria muito raramente, já que dependíamos da boa vontade de minha mãe, que nos acompanhava, a mim e aos meus irmãos. O cinema era um espaço de sonho e magia, um universo vasto e revelador, assim como a literatura, onde tudo podia acontecer, sem que eu precisasse mover um dedo.

Creio que os filmes que me tornaram cativa da Sétima Arte foram os vistos no cinema Lux de Pombal (Foto/Reprodução Internet), cidade onde costumava passar minhas férias escolares, em casa dos meus avós maternos. A liberdade que me faltava aqui, eu ganhava lá; perambulava o dia inteiro pelas ruas e arredores da cidade na companhia de outras crianças, em brincadeiras, trilhas e banhos de rio. À noite, tínhamos a praça. E o cinema. O Cine Lux ficava a cem metros de casa. Meu avô, que me cobria de dengos – fui a sua primeira neta –, costumava me presentear com uma mesada semanal para os ingressos e os confeitos. Não importava que o filme em exibição fosse o mesmo de ontem ou anteontem. Se não fosse proibido para menores, eu estava lá. Os faroestes americanos, quase sempre, eram os da vez: John Wayne, Kirk Douglas, Burt Lancaster, Clint Eastwood, Paul Newman me apresentaram um mundo masculino, de heróis, bandidos e índios, onde a natureza bela e inóspita do oeste americano se fazia igualmente personagem; filmes, cujas trilhas musicais, algumas de Ennio Morricone, ainda hoje me comovem.

Além das aventuras de Tarzan, as comédias de Mazzaropi, o caipira andrajoso e de voz arrastada, para quem os entendidos de cinema viravam o rosto, eram exibidos com frequência no Lux de Pombal. Os filmes retratavam a vida simples no campo e a habilidade do personagem em se livrar das embrulhadas em que se metia. As músicas, interpretadas por ele mesmo, eram composições – só mais tarde tomei conhecimento desse fato – de Dolores Duran, Catulo da Paixão Cearense e Tom Jobim, entre outros.

Também foi no cinema Lux que assisti a filmes de Charles Chaplin, aos épicos Lawrence da Arábia, Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, ao musical Amor, Sublime Amor, ao extraordinário A Ponte de Waterloo, sem falar em tantos outros que não me chegam agora à memória, mas que, por certo, imprimiram em mim o gosto pelo cinema.

Então, chegou o tempo dos VHSs e, em seguida, dos DVDs. Os bons filmes, escolhidos nas locadoras – havia uma a trinta metros da minha casa –, substituíram a telona. Muitas vezes, deixava de encontrar os amigos em bares e restaurantes para gozar essas noites domésticas, que para mim tinham um sabor mais festivo. As indicações de amigos (as) cinéfilos (as) e de experts no assunto me conduziram aos trabalhos de Walter Lima Junior, Glauber Rocha, Hector Babenco, Nelson Pereira dos Santos, Elia Kazan, Martin Scorsese, Jane Campion, Billy Wilder, Coppola, Woody Allen, Hitchcock, Bresson, Agnès Varda, Akira Kurosawa, Robert Altman, Nadine Labaki, Oliver Stone, Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni, Sofia Coppola, Pier Paolo Pasolini, Stanley Kubrick, Roman Polanski, Sidney Lumet, Bernardo Bertolucci, Tim Burton, Anna Muylaert, Laís Bodanzky, Werner Herzog, Spike Lee, Nora Ephron, Alejandro Amenábar, Isabel Coixet – naturalmente, devo estar esquecendo de alguns nomes.

Houve a “fase Fellini”, em que eu só queria ver e rever os filmes dele – perdi a conta de quantas vezes assisti a Amarcord. Houve o tempo da Nouvelle Vague, com Truffaut, Chabrol e Godard. Em seguida, Ingmar Bergman, com todo aquele silêncio, a tensão emocional por trás de cada cena, foi o meu assombro, paixão avassaladora, o Inferno para sempre desejado. Louis Malle chegou para me arrebatar, com toda aquela melancolia existencialista, a perfeita construção de personagens, seus tormentos íntimos, os diálogos inteligentes, sem sobras nem concessões, os silêncios significativos.

Dotados de força e humanidade, os filmes de Carlos Saura me invadiram as noites de deslumbramento; a tragédia da ditadura franquista, a cultura cigana, as vidas miúdas do povo espanhol e sua luta contra a opressão se apresentam de forma competente, às vezes em cenas alegóricas de incomum formosura. Cria Cuervos, a história da menina Ana, filha de um oficial franquista e de uma mulher que teve a vida abreviada pelo sofrimento causado pelo marido, tornou-se o meu preferido – em meu romance O pássaro secreto, a protagonista Aglaia relata as impressões que esse filme provocou nela.

Já o conterrâneo de Saura, Luís Bunuel, não me agradou. Seus filmes, ao menos os que cheguei a assistir, são narrativas oníricas, metafóricas, delirantes. Talvez deva voltar a revê-lo, afinal de contas eu era muito jovem e muitos anos se passaram desde então, mas como não sei mais o tempo que me resta – antigamente eu tinha a eternidade –, penso duas vezes antes de fazê-lo.

Dessa época, recordo-me especialmente de um filme; creio tê-lo assistido no início dos anos noventa. Nunca mais pude revê-lo, razão talvez por que, para mim, ele continua envolto numa aura de mistério e singular beleza. Esposamente, dirigido por Marco Vicario, traz a belíssima atriz italiana Laura Antonelli no papel da esposa que sofre com problemas de ordem psicossomática e é considerada sexualmente frígida pelo marido (Marcello Mastroianni). Com a enganosa morte do companheiro, acusado de um assassinato, ela assume os negócios da família (produção de vinhos) e se revela sexualmente plena.

Ressalto ainda o arrebatamento que os filmes do Dogma 95 causaram em mim. Criado pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, o movimento nasceu com o espírito livre dos filmes autorais, realizados com poucos recursos e centrados unicamente nas narrativas e atuação dos atores e atrizes. De câmera na mão, trouxeram ao mundo criações extraordinárias, a exemplo de Festa de Família.

Nos últimos anos, com raras exceções, os filmes exibidos nos cinemas da minha cidade – comerciais e blockbusters –, não me interessam. Além disso, por força de trabalho excessivo e muitas leituras, tem me restado pouco tempo para as películas oferecidas em plataformas de streaming. Preparo-me agora para ver no cinema Assassinos da Lua das Flores, de Scorsese, um dos meus cineastas preferidos.

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